mantive o silêncio
quando deveria ter gritado; gritei quando deveria
ter mantido o silêncio; chorei muito no consultório
clínico; chorei muito ao volante; perdoei; senti inveja; me senti invisível; desejei não ser eu; não atendi o telemóvel
de propósito; fui muito feliz em sítios diferentes; senti que nunca mais seria feliz; sonhei estar grávida; sonhei com o meu funeral; implorei baixinho por uma sms; adormeci a chorar; recebi e dei abraços sinceros; ri muito com as amigas; dormi ao ar livre; senti o coração parar; perdi o trabalho de casa
de um aluno; roubei cigarros; desenhei bigodes em fotos; urinei numa piscina; comi por gula; fui insultada; fui elogiada; acusei outros injustamente; fui acusada injustamente; fingi estar doente; fingi não estar doente; menti descaradamente, acreditei piamente; rezei muito; me zanguei com Deus; perdi a fé; retomei a fé; ansiei pelo futuro; temi o futuro... Eu já, eu já...
quarta-feira, 26 de março de 2014
quarta-feira, 19 de março de 2014
A subfelicidade
"O que
mais dói não é – desengana-te – a infelicidade. A infelicidade dói. Magoa.
Martiriza. É intensa; faz gritar, sofrer, saltar, chorar. Mas a infelicidade
não é o que mais dói. A infelicidade é infeliz – mas não é o que mais dói.
O que
mais dói é a subfelicidade. A felicidade mais ou menos, a felicidade que não se
faz felicidade, que fica sempre a meio de se ser. A quase felicidade. A
subfelicidade não magoa – vai magoando; a subfelicidade não martiriza – vai
martirizando. Não é intensa – mas é imensa; faz gritar, sofrer, saltar, chorar
– mas em silêncio, em surdina, em anonimato. Como se não fosse. Mas é: a
subfelicidade é. A subfelicidade faz-te ficar refém do que tens – mas nem assim
te impede de te sentires apeado do que não tens e gostarias de ter. Do que está
ali, sempre ali, sempre à mão de semear – e que, mesmo assim, nunca consegues
tocar. A subfelicidade é o piso -1 da felicidade. E não há elevador algum que
te leve a subir de piso. Tens de ser tu a pegar nas tuas perninhas e a subir as
escadas. Anda daí.
Sair
da subfelicidade é um drama. Um pesadelo. Sair da subfelicidade é mais difícil
do que sair da infelicidade. Para sair da infelicidade, toda a gente sabe – tu
mesmo o sabes: tens de tomar medidas drásticas. Medidas radicais. Porque a
infelicidade é, também ela, radical. Mas sair da subfelicidade é uma batalha
interior muito mais dolorosa. Desde logo, porque não sabes se queres, mesmo,
sair da subfelicidade. Porque é na subfelicidade que consegues ter a certeza de
que evitas a desilusão – terás, no máximo, a subdesilusão; porque é na
subfelicidade que consegues ter a certeza de que evitas a perda – terás, no
máximo, a subperda. Estás a ficar perdido com o que te digo?
A
subfelicidade é o produto mais diabólico que a humanidade criou. Formatado pela
consciência, o homem assimilou um conceito que, na verdade, não existe: o da
felicidade segura. Espero que estejas bem seguro nessa cadeira quando leres o
que aí vem no próximo parágrafo.
A felicidade
segura não existe. A felicidade segura é segura, sim – mas não é felicidade. A
felicidade pacífica é pacífica, sim – mas não é felicidade. A felicidade,
quando é felicidade, assolapa, euforiza, arrebata. E não deixa respirar, e não
deixa sequer pensar. A felicidade, quando é felicidade, é só felicidade. E tudo
o que existe, quando existe felicidade, é a felicidade. Só ela e tu. Ela em ti.
Ela em todo o tu. A felicidade, para ser felicidade, não tem estratos, não tem
razão. Ou é ou não é. A felicidade é animal, de facto – mas é ainda mais
demencial. Deixa-te louco de felicidade, maluco de alegria, passado dos cornos.
Só quando estás dentro da felicidade é que estás fora de ti. Liberto do corpo,
da matéria, da sensação – e imerso naquela indizível comunhão. Tu e a
felicidade. Já a sentiste, não?
Não há
como dizer de outra maneira: se estás acomodado à subfelicidade, se tens medo
de ser feliz e preferes a certeza de seres subfeliz: és um triste de todo o
tamanho. A subfelicidade é uma tristeza. Uma tristeza de hábitos, de rotinas,
de sorrisos – uma tristeza que inibe a surpresa, o imprevisível, a gargalhada.
Uma tristeza que te faz refém do que fazes e te impede de te seres o que és.
Olha em redor: a toda a volta há pessoas subfelizes, pessoas que dizem “vai-se
andando”, pessoas que dizem “tem de ser”, pessoas que dizem “eu até gosto
dele”, pessoas que dizem “sou feliz” com os olhos cheios de “queria ser feliz”,
pessoas que dizem “é a vida”. Mas não é. A vida não é a quase felicidade. A
vida não é a subfelicidade. E, se é a primeira vez que vês isso, fica entendido
o que sentes. Ou subentendido, pelo menos."
Pedro Chagas Freitas
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